Ainda Estou Aqui: uma análise da obra e da memória resistente acerca da Ditadura Militar no Brasil

A obra cinematográfica e a família Paiva

 

Dirigido pelo grande diretor Walter Salles (responsável por dirigir outras grandes obras do cinema brasileiro, como Central do Brasil e Diários de Motocicleta), o filme “Ainda Estou Aqui” é uma adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, que eterniza a história da família Paiva, mas mais especialmente, do ex-deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura— que completou 60 anos do golpe em 2024.

 

Além da capacidade de eternizar a história, o filme potencializa uma certa afinidade emocional no público ao abordar a forma como a casa da família Paiva, ainda na presença de Rubens— interpretado formidavelmente por Selton Mello—, era plena de amor e receptividade. O roteiro faz com que nos apaixonemos e nos envolvamos na expansividade de Rubens, que se conectava de forma tão espontânea com seus filhos e sua esposa Eunice— interpretada por Fernanda Torres—, e devido ao seu senso de humor e simpatia, tinha grande facilidade de relacionar-se também com amigos e família, de forma que sua casa estava sempre cheia de vida. Ao mesmo tempo que o filme nos envolve com a calorosidade da família, ele friamente nos arranca tal envolvimento no momento em que Rubens é levado para ser “questionado”, pois, não satisfeito com a cassação de seu mandato no início da ditadura, o Governo decide levá-lo por estar ajudando e recebendo cartas de famílias exiladas.

 

Foto da família Paiva

 

A partir desse momento, a casa se transforma em um ambiente de confinamento e confusão pela presença de agentes da Inteligência do Exército, transferindo o foco do filme para Eunice, que, em meio ao desaparecimento de seu marido e os questionamentos de seus 4 filhos em casa, teve que omitir sua prostração e manter-se forte perante sua família durante longos 25 anos de tamanha angústia, visto que tinha esperanças de que Rubens voltasse.

 

O certificado de óbito de Rubens, torturado e morto pela crueldade do regime, foi entregue a eles somente em 1996, alegando que sua morte teria sido por causa “não natural; violenta; causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964.” Com isso, a família, finalmente, conquistou a declaração e o reconhecimento público por parte do Estado acerca do assassinato de Rubens

 

Cena do filme recriou foto de Eunice Paiva

 

 

Rompendo com a “ditabranda”

Imagem icônica de manifestação contra a ditadura

 

 

A obra “Ainda Estou Aqui” elevou, significativamente, as discussões acerca da preservação da memória real do período ditatorial. As “fake news” e as propagações de ideias de que mortes, torturas e perseguições não ocorreram no Brasil, ou que foram realizadas com moderação, são ameaças para a sociedade brasileira, visto que elas apagam o passado marcado pelo extermínio e pela censura, abrindo, consequentemente, espaço para a repetição de uma história novamente repressiva.

 

Nesse viés, apesar de tentativas de incentivo ao boicote do filme nas redes sociais do país, movimentos como o “Ditadura Nunca Mais” foram, felizmente, mais fortes, e, com o lançamento do filme, o qual retratou o caso de violência contra a família Paiva, os milhares de outros casos de violência contra os direitos humanos foram reforçados na memória social.

 

O Ato Institucional de Número 5 de 1968, o qual decretou a regulação da liberdade de expressão e da circulação de informações, controlando todo tipo de conteúdo contendo críticas ao regime militar, é um dos maiores exemplos da violência e perseguição psicológica e ideológica presentes no regime, legalizando, portanto, a censura. Ele foi responsável por implantar pensamentos pró-ditadura, que perpetuam hodiernamente, os quais criaram a ilusão de que foi “branda”.

 

Além disso, segundo a Procuradora da República e Ex-Presidente da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugênia Gonzaga, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em 2011, reconheceu apenas 434 mortos pela ditadura, visto que adotou o critério da Lei sobre Mortos e Desaparecidos Políticos— que foi, contraditoriamente, negociada com os próprios militares em 1995—e, dessa forma, considerou somente aqueles que tinham ligação direta com uma militância política, não contabilizando, por exemplo, indígenas, pois não tiveram seus casos investigados de maneira individualizada. Nessa perspectiva, é claro que a ditadura brasileira seria vista como “branda”, já que, até os dias de hoje, o país não reconhece oficialmente milhares de civis mortos e desaparecidos pelos militares.

 

A CNV chegou a apresentar, em seu relatório, que, no mínimo, 8.350 indígenas teriam sido mortos durante a ditadura. Porém, como os casos não foram individualizados, nenhuma dessas mortes foi incorporada à lista oficial da comissão. Nessa ótica, Eugênia Gonzaga afirma que a CNV foi extremamente conservadora e que, se todos os indivíduos atingidos pelos atos institucionais decretados durante o regime fossem formalmente contabilizados, haveria, facilmente, cerca de mais de 10 mil mortos pela ditadura.

 

Contudo, o filme chega rompendo com essas concepções errôneas e colaborando com a reconstrução do imaginário social brasileiro acerca dos legados da Ditadura.

 

 

 

O cinema brasileiro conquistando o mundo

Foto marcante do filme é recriação de imagem real

 

O filme é sucesso nacional e internacional e isso só foi possível pela incrível equipe de roteiristas, pelo diretor e pelos atores já consagrados na televisão brasileira. Walter Salles— diretor— foi responsável também por dirigir o clássico indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional e de Melhor Atriz “Central do Brasil”, protagonizado por uma das maiores atrizes do país Fernanda Montenegro, que é mãe de Fernanda Torres e que atuou nas cenas finais de “Ainda Estou Aqui” como Eunice idosa.

 

Fernanda Torres, apesar de ter um histórico de atuações em séries de comédia, como “Tapas e Beijos”, brilhou ao interpretar a séria e resistente Eunice, transmitindo a todos sentimentos de angústia, de tristeza, mas também de força e esperança. Seu parceiro no filme Selton Mello, o qual se consagrou com a comédia dramática “O Auto da Compadecida”, conseguiu reviver muito bem Rubens Paiva, sendo caracterizado como uma pessoa sorridente, leve, mas também determinada a seguir e a cumprir com seus valores.

 

Esse tocante drama foi construído por fenômenos do cinema brasileiro conquistou, não somente os amantes de cinema, como também a crítica especialista em cinematografia. Com isso, a obra rendeu mais de 40 premiações— dentre elas, o primeiro Oscar da história do cinema brasileiro pela categoria de “Melhor Filme Internacional”—, além de várias indicações nos principais festivais de cinema do mundo.

 

Confira a lista com os principais prêmios vencidos:

  • Melhor longa-metragem do país pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema
  • Melhor filme internacional pelo Festival de Cinema de Palm Springs
  • Melhor Filme Internacional pelo Latino Entertainment Film Awards
  • Melhor roteiro no Festival Internacional de Cinema de Veneza
  • Melhor atriz de drama para Fernanda Torres no Globo de Ouro
  • Melhor Filme Internacional no Oscar

 

Walter Salles erguendo a estatueta do Oscar

 

Fernanda Torres após vencer Globo de Ouro

 

A produção audiovisual atraiu mais de 5 milhões de brasileiros para assisti-la nas telas grandes de todo o país, consolidando-se entre as maiores bilheterias nacionais de todos os tempos, conforme dados da Secretaria de Regulação da Agência Nacional do Cinema (Ancine).

 

Esse resultado é importantíssimo para a valorização do cinema nacional— feito por brasileiros para brasileiros—, visto que incentiva investimentos em produções de filmes nacionais, criando, assim, mais oportunidades ao público nacional de consumir e contemplar obras do país. Dessa forma, a arte local conseguirá o espaço que merece dentro dos cinemas do país e do coração da população brasileira.

 

 

 

A memória sempre precisará de estar aqui

 

Dentre tantas mensagens nas entrelinhas do filme, a que nos leva à uma maior reflexão é o nome do filme: Ainda Estou Aqui. Após muitos anos lutando por justiça pela morte de Rubens, Eunice, em 2004, acabou desenvolvendo a doença de Alzheimer e faleceu 14 anos depois, aos 89 anos. No livro, Marcelo Rubens Paiva menciona que a frase “Ainda estou aqui” era comumente utilizada por Eunice para dizer que, apesar da doença, ela ainda estava ali, presente e consciente.

 

Para além dessa interpretação, menciona-se novamente o filme, em que, na cena final, Eunice aparece mais velha em um almoço com sua família e é transmitida na televisão uma matéria rememorando a Ditadura Militar. Nessa cena, é notável que Eunice emociona-se e que, mesmo com sua doença já muito evoluída, é levada de volta aos horrores vividos por ela e pela sua família, transmitindo a ideia de que a Eunice que viveu aquele período ainda estava ali. Esse momento ainda pode referir-se à presença e ausência de Rubens, que, mesmo falecido, manteve-se presente ao ter sua luta continuada por sua esposa.

 

Portanto, ao relembrar a Ditadura, Eunice, juntamente à sua família, torna-se símbolo da resistência e da memória, a qual não pode ser apagada, para que dias sombrios como aqueles não se percam na memória social do povo e não se repitam nunca mais.

Foto real de Eunice e Rubens Paiva

 

 

Por:​
Sofia Vilar e Isadora Laís Metsavaht

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