F: Por que você escolheu fazer Sociologia
H: A minha trajetória começa na área de história. Eu não sei se foram as leituras que eu tive na adolescência ou por causa de um ou dois professores, mas eu acabei me encantando por essa área. Quando eu fiz o vestibular da UCG, que hoje é a PUC, a minha pontuação geral daria pra eu escolher qualquer curso, mas eu queria fazer história. Mesmo com as poucas condições financeiras da minha família, eu tive o privilégio de ter começado a trabalhar com pessoas que tinham uma formação acadêmica muito ampla e de ter tido acesso a livros. Os livros mudaram minha vida. Eu conheci uma senhora que veio para Goiânia, depois de ter morado no Rio de Janeiro por muitos anos. Ela foi funcionária da biblioteca nacional, trabalhou para a Unesco. O pai dela veio refugiado para o Brasil, era um austríaco. Inclusive, ele é um escritor conhecido no Rio Grande do Sul. Quando essa senhora veio morar com o filho em Goiânia, ela trouxe parte da biblioteca dela. Um belo dia ela me pega olhando os livros da sua biblioteca e puxando um pra ver. Quando ela me surpreendeu, eu fiquei constrangido, porque eu não queria pegar nada sem autorização. Aí ela me perguntou: “Você gosta de ler?”. Eu disse: “Olha, gostar, eu gosto, mas eu não tenho livros”. Ela, então, foi me emprestando. E como a formação dela era de humanas, ela me emprestou muitos livros nessa área. O primeiro que eu li, inclusive, chamava-se “Spartacus”, um romance baseado em um fato real, que eu tenho até hoje por que ela me deu. Ela falou: “Pronto, pode ficar com você”. Então eu fui por essa trajetória.
Me casei muito jovem e só entrei na faculdade tempos depois, com 29 anos, e eu já entrei com aquilo na cabeça, convencido de que eu gostaria de fazer História. A filosofia e a sociologia foi um trajeto diferente. Quando eu vim trabalhar aqui no Bueno, 21 anos atrás, me deram a chance de trabalhar com história, mas precisavam de professor de sociologia e filosofia e aí me passaram a matéria. Eu fui estudando, trabalhando, e acabei ficando conhecido no Bueno nessas duas áreas e não como historiador. Dessa forma, eu tive que legalizar minha situação, procurar me formar, porém confesso a você que são duas áreas de que gosto muito, porque me desafiam, porque me fazem estudar continuamente.
Por mais que as pessoas digam que a educação está falida, tanto em casa, com a família, quanto na escola, eu não acredito nisso. Você tem aquele aluno que às vezes, naquele momento da aula, da vida dele, ele tem outra prioridade, que não é a sala de aula. Já tem outros que te surpreendem, trazem livros que estão lendo, fazem perguntas interessantes, tem visões na aula que um professor nunca tinha ouvido falar. Essas três componentes curriculares da área de humanas – história, filosofia e sociologia – me encantam muito. Por quê? Porque me desafiam a estudar, me desafiam a melhorar. Há conceitos que eu explicava 10 anos atrás que eu tenho vergonha hoje, tenho vergonha do quanto eu não compreendia conceitos, mas que depois passei a compreender.
F: Na última aula você colocou no quadro a frase: “Há de haver algum lugar, um confuso casarão, onde os sonhos serão reais e a vida não”, do Chico Buarque e Edu Lobo, sem um motivo aparente e sem explicá-la. Você poderia falar mais um pouco sobre ela?
H: Eu não expliquei justamente porque eu até deixei no quadro pra ver se algum aluno iria perguntar alguma coisa. Foram três aulas naquele dia e nenhum aluno perguntou. Mas talvez naquele momento, para quem escreveu “A moça que sonha”, o “sonhar” se tornou muito mais necessário do que o “viver a realidade”. Até porque a vida às vezes é, não cruel, mas, às vezes, é pesada para se carregar.
O sonhar sem poder realizar é um sonhar vazio. Mas tudo que os homens produziram um dia foi sonhado. O sonhar é a capacidade de desejar, projetar futuro. Só que eu tenho que realizar. E para realizar eu tenho que encontrar caminho para essa realização. Nessa perspectiva, sonhar é mais importante, porque ele vem antes do fazer e é o que impulsiona o fazer. O sonhar advém de uma necessidade e ele cria necessidades. Então nesse ponto sonhar é mais interessante que o viver. Dessa forma, se algum dia nós encontrarmos um lugar onde o sonho seja real e a vida não, vamos encontrar o contrário dessa vida mecanizada, de rotina, de consumo, de individualismo, de solidão. Talvez ele seja um lugar de sonhos, povoado de pessoas amigas, queridas, onde você não se sinta só.
F: Você tem algum sonho?
H: Ah, tenho vários, mas eu não me prendo mais a sonhos gigantescos. É a realização de pequenos sonhos que te coloca de pé todo dia. Porque você tem as frustrações do dia, mas também tem as conquistas. Projetar, sonhar pequenas coisas diárias. No final de tudo isso dá um grande sonho. Como por exemplo: ontem eu estava escutando jazz, blues. E eu me lembrei que queria aprender a tocar saxofone. Esse sonho eu quero realizar ainda. Nós apenas temos que tomar cuidado com os sonhos que fazem as pessoas estarem sempre projetando um futuro, projetando uma imagem que não é possível, porque faz a pessoa esquecer de viver. Até porque o tempo está passando. Por isso, também é preciso não esquecer da realidade e nos perguntar: “O que eu posso fazer aqui, agora?”, “Com quem eu posso estar aqui e agora?”, “Com quem eu posso compartilhar alguma coisa?”.
F: A próxima pergunta é: “Como foi sua experiência no exército e o que te fez sair dele e ir dar aula?”
H: Eu fui pro exército da mesma forma como a maioria da minha geração foi. Era obrigado a fazer alistamento, passava por uma seleção e, se fosse selecionado, era obrigado a servir. Foi uma experiência interessante por estar longe de casa, conhecer pessoas interessantes, fazer coisas que, na minha realidade financeira, eu nunca pensaria em fazer – como viajar pelo Brasil, de helicóptero, avião – , conhecer lugares onde eu nem imaginaria pisar – como a Amazônia, a caatinga. Foi uma experiência boa, mas eu acredito que eu não nasci pra vida militar.
Eu tive uma proposta boa na época para sair do exército para uma iniciativa privada. Eu também estava apaixonado, queria me casar. Na minha condição de soldado, cabo, a lei proibia que um soldado se casasse. Então eu tive essa oportunidade de iniciativa privada muito boa, pagava muitas vezes mais que o exército, daria para realizar meu sonho de casamento, começar minha vida de casado. Tomei essa decisão e não me arrependo. Mas na vida toda você tem coisas boas e coisas ruins. O exército não foi diferente, mas eu acredito que teve mais coisas boas do que ruins.
F: Você amadureceu nesse tempo?
H: Amadureci sim, porque lá você não é tratado mais como uma criança, como um adolescente, como você era tratado pela escola e família. Foi um ambiente que me amadureceu muito, apesar de que, como eu já comecei a trabalhar muito cedo, eu fui forçado a ter um amadurecimento em relação ao mundo do trabalho muito precoce. Por causa disso, eu desconfio que parte da minha infância não foi vivida como deveria ter sido vivida. Mas, de fato, toda experiência fora de casa, te enriquece e te amadurece muito, porque embora você tenha seu pai e sua mãe, eles não estão ali do seu lado, mas provavelmente eles te ensinaram a sobreviver. É interessante, inclusive, você valorizar seus pais, porque você vai sentir que na verdade eles estão do seu lado, porque os ensinamentos que eles te deram estão te dando suporte para você não cair.
F: Logo quando você acabou o seu serviço no exército você começou a fazer uma faculdade?
H: Não. Eu fui fazer faculdade com 29 anos. Eu sai do exército quando eu tinha 19, 20 anos. E fiquei 9 anos fazendo trabalhos mais subalternos, mais braçais. Foi quando eu resolvi voltar, fazer ensino médio e prestar vestibular. O motivo, eu não sei se foi garra, necessidade, ou sonho… Acho que tem um pouco de tudo. Esses três elementos podem ajudar a explicar como eu consegui, sendo casado, com filho pequeno e com uma situação financeira muito complexa.
F: Você teve alguma experiência em sala de aula que te marcou?
H: Eu vou te dizer uma experiência que me marcou, não foi em sala de aula, mas foi no colégio. Eu estava em determinado colégio de Goiânia, atravessando o pátio e, de repente, ouço uma voz lá atrás: “Professor Hudson!”. Eu reconheci a voz na hora e, quando virei para trás, ela se confirmou. Era o meu antigo professor de universidade e o meu colega de escola. Ele se chamava Luís. Até hoje eu guardo a sensação estranha e boa de quando o professor Luis falou alto “Professor Hudson!”. Ao mesmo tempo, foi estranho, mas foi bom. Inclusive é um dos que eu tenho como espelho em sala de aula, é um dos que eu mais estimo e admiro. Isso me marcou muito, um professor me chamando de professor.
F: A última pergunta é: “Você tem um conteúdo que você mais gosta de dar?”
H: Talvez o conteúdo que eu mais goste de dar é história da América Latina. Nisso eu uno duas coisas, a literatura e a história. Eu gosto muito de ler sobre e de trabalhar a construção da América Latina e sua identidade, se é que existe uma identidade americana. Isso me chama a atenção. Todas as vezes que existe uma oportunidade de trabalhá-la, eu fico feliz. Na sociologia, tem duas áreas que me chamam muita atenção, a questão das desigualdades sociais e do mundo do trabalho. Não para ficar acusando um sistema ou alguém ou isso ou aquilo. Mas para mostrar que existem pessoas pensando a desigualdade, seja no aspecto de mantê-la e de se beneficiar-se com ela, seja para compreender os mecanismos que geram-na, tentando encontrar caminhos, talvez não para acabar com ela, mas para diminuí-la. E aí entra o mundo do trabalho, porque ele é o local também da desigualdade social, da geração de riqueza. E é um mundo que mostra que trabalho gera riqueza, mas uma riqueza que não é bem distribuída, voltando na desigualdade social.
F: Sim, a desigualdade social é um ponto que me chama muita atenção também. Acho que todo mundo que tem um coração consegue perceber, por exemplo, o quanto é triste a realidade de pessoas que moram na rua. Porque é importante ser grato pelo que temos ou conseguimos.
H: Acho que nós podemos finalizar a entrevista com uma das palavras mais bonitas, mas que não tem seu significado praticado pelos seres humanos, a gratidão. Eu sou muito grato por todas as pessoas que caminharam ao meu lado. Existem aquelas pessoas que se juntam a nossa caminhada e ficam poucas horas, poucos dias, poucas semanas, mas que foram muito importantes e que, naquele momento, funcionaram como se fossem um anjo da guarda. Eu acredito que esse ponto é interessante, gratidão. Eu tenho muita gratidão pela minha mãe, que fez muito esforço pra criar eu e minhas irmãs, a todos os amigos, às vezes até gratidão para os inimigos, porque fazem você pensar já vida, gratidão aos meus professores, aos meus avós, aos meus alunos. Acho que falta no mundo reconhecer que precisamos do outro e que ser gratos ao outro. Eu acho que o bonito é isso.